O auditório Esperança Garcia, na Faculdade de Direito da Universidade de Brasília, entrou em ebulição nesta quarta-feira (21) quando a mestre de cerimônia anunciou a outorga de título de Doutora Honoris Causa à filósofa, escritora e ativista do movimento negro Sueli Carneiro. Recepcionada por uma plateia emocionada em ver uma das importantes figuras na luta antirracista e pela constitucionalidade do sistema de reserva de vagas para o ingresso de estudantes negros e indígenas na UnB, Sueli desceu as escadas do auditório rumo à mesa diretiva de punho levantado, símbolo da força e resistência do povo negro.
A escolha do local para a solenidade não foi coincidência. Assim como Esperança Garcia – que batiza o nome do auditório – quebrou barreiras ao tornar-se a primeira advogada da história do Piauí e denunciar, por meio de uma petição, em 1970, os maus-tratos por ela sofridos, Sueli Carneiro também fez história ao ser a primeira mulher negra a receber o título pela UnB. Aprovada pelo Conselho Universitário (Consuni), a proposta de outorga da honraria partiu do Programa de Pós-Graduação em Direitos Humanos e Cidadania do Centro de Estudos Avançados Multidisciplinares (Ceam), que teve contribuição da filósofa na concepção epistemológica
“Sua produção intelectual tem alimentado diversas gerações de intelectuais negras e negros, na academia e fora dela, oferecendo ferramentas para analisar nosso mundo”, disse Wanderson Flor do Nascimento, professor do Instituto de Ciências Humanas (ICH) e do PPG, e um dos oradores. “Sueli, como eu, é filha de Ogum, partilhando muitas características de nosso pai: é rigorosa, lutadora, estrategista, acolhedora, mobilizadora”, falou, sorridente.
Wanderson declarou que a característica que ele mais ama em Sueli e no orixá aparece na palavra asíwájú, da língua iorubá: aquele que anda na frente. Além disso, para ele, os dois se assemelham na generosidade. “Mesmo quando está aqui para receber uma honraria da UnB, nos oferta sua história, sua trajetória, seus passos como presentes para que possamos aprender com ela e buscar que esses gestos-caminhos que a fizeram merecedora de reconhecimento também possam ser trilhados por outras pessoas negras, sobretudo outras mulheres negras que venham agora e depois”, completou.
Também ligada ao ICH e membro da comitiva de Sueli, a professora Ana Flávia Magalhães saudou a homenageada com versos de Conceição Evaristo e atribuiu-lhe características de destemida e valente. “A imagem é, de fato, muito apropriada para alguém que tem sistematicamente criado possibilidades para a superação de gravíssimos equívocos do chamado ‘pensamento social brasileiro’, com a segurança de que essas batalhas são mais que necessárias”, frisou.
Ana Flávia ressaltou a força coletiva de Sueli Carneiro, e afirmou que a excelência de sua obra não se restringe a escritos acadêmicos e falas. “Ela integra a geração de mulheres negras e homens negros que nomeou, descreveu, analisou e deslegitimou publicamente o dispositivo que por muito tempo autorizou a violação da humanidade e da cidadania de africanos e seus descendentes neste país: o mito da democracia racial.”
Após mais uma longa salva de palmas, Sueli Carneiro discursou no púlpito do auditório Esperança Garcia. “É com muito orgulho que eu recebo essa homenagem extraordinária, o primeiro título de Honoris Causa outorgado a uma mulher negra pela UnB”, começou. “Me alegra o fato desse reconhecimento me dado hoje vir precedido de outros gestos de grande impacto ou simbolismo que a UnB vem dirigindo à comunidade negra, que foi a primeira federal a reservar vagas para estudantes negros.”
A agraciada espera que a Universidade mantenha o compromisso de fortalecer o debate antirracista e antissexista, sendo mais uma vez pioneira e modelo para as outras universidades brasileiras. “A Universidade de Brasília é uma das mais importantes universidades do Brasil e da América Latina, o que torna esse título mais importante ainda para mim, pelo reconhecimento de minha trajetória, ao longo da qual procurei fazer da reflexão intelectual e da minha escrevivência uma espada, como convém uma filha de Ogum que sou”, completou sob aplausos.
TRAJETÓRIA – Sueli Carneiro dedicou esforços para desagregar racialmente dados censitários para produzir evidências da desigualdade racial e afirmar valores culturais negro-africanos que sustentam a identidade e a resistência das mulheres negras. Seus escritos foram referências bibliográficas em pelo menos 537 trabalhos acadêmicos, e sua tese de doutorado, A construção do outro como não-ser como fundamento do ser, defendida na Universidade de São Paulo em 2005, é um dos maiores estudos sobre as relações raciais no Brasil.
Membro fundadora do Coletivo de Mulheres Negras de São Paulo e do Geledés – Instituto da Mulher Negra, Sueli produziu argumentos para consolidar uma estratégia política de enegrecimento do ideário feminista, em especial no âmbito das políticas públicas voltadas para a promoção da igualdade de gênero. Nascida em 1950 na cidade de São Paulo, filha de um ferroviário e de uma costureira, Sueli estudou desde pequena em escolas públicas, e, apesar de todos os desafios, galgou uma posição pouco provável para uma jovem negra e periférica, sendo uma influência fundamental para jovens negros e negras do Brasil.
A reitora Márcia Abrahão afirmou que a Universidade de Brasília se sente honrada quando concede um título de Doutora Honoris Causa a alguém que tenha se distinguido pelo saber ou pela atuação em prol das artes, das ciências, da filosofia, das letras ou do melhor entendimento entre os povos. “Nós é que agradecemos, porque a senhora agora irá representar a UnB por onde passar”, disse para Sueli Carneiro.
Esta matéria é uma reprodução na íntegra do texto da matéria: Sueli Carneiro é a primeira mulher negra doutora honoris causa pela UnB, escrita por Daniel Lustosa/Secom UnB e fotografada por Luís Gustavo Prado/Secom UnB. Aqui tomamos a liberdade de acrescentar alguns registros nossos.